sábado, 11 de fevereiro de 2012

O perigo



O perigo vem de quem, independentemente do mérito da estratégia que adoptou, tenta tomar as rédeas de uma união com uma filosofia de cisão. Quanto ao mérito da estratégia, faut voir, gente mais esclarecida que eu duvida bastante, eu só posso esperar que seja minimamente exequível, porque senão esta sangria torna-se um crime. Quanto à filosofia, a coisa é mais complexa.
A Doroteia tem tratado os países da União – especialmente a malta do sul, e em particular a Grécia - com uma falta de respeito despudorada e crescente. Começa com as conferências pré-conselho com o seu petit nicolas – acho que eles só se reúnem para poderem fazer fotos sem terem subir a um banquinho. Continua com esta maneira obtusa de se manter impermeável a considerações económicas consensuais, que a parece impedir de ter a consciência ou a elasticidade necessárias para agir tempestivamente. Ainda tem a suprema falta de seriedade de dizer que por cá se trabalha pouco e acaba em grande estilo, com as declarações ridículas sobre a Madeira, em que revela ignorância sobre a realidade da região - normal- e sobre o procedimento europeu de afectação de fundos estruturais - surreal. Toda esta tacanhez parece obedecer, na minha opinião, a um preconceito de um norte eficaz que olha com sobranceria para um sul desorganizado que não trabalha. Eu diria que quanto à organização terá porventura razão, não o tem certamente quanto ao trabalho. Mas adiante, que essa nem é a questão. A questão, o perigo, é que este preconceito revela uma filosofia dicotómica da União. Trabalhadores e calões, bons e maus. Esta voz Wagneriana ressoa na cabeça da ex-östie e diz-lhe que, no fundo, trata-se de separar o trigo do joio, confrontar modos de vida, mentalidades, princípios muito diferentes. Tão diferentes - continua o nibelungo de lederhosen, aos berros na cabeça da pobre Doroteia - que não falamos de cooperação nem de simbiose, mas de financiamento, de parasitismo! Tão diferentes – por esta altura já Doroteia treme de emoção e voa livre com as outras, já a cefaleia deu lugar à exaltação febril da virtude boreal, a mulher está pronta para o clímax apoteótico - que talvez não devam continuar juntos!
Não sei se esta voz está na esfera consciente da mente da Doroteia ou se é um zumbido abafado, mas a postura que promove é a prova de que o espírito europeu anda pelas ruas da amargura. Desde logo, no norte, onde a opinião pública bebe do mesmo schnapps da Doroteia e culpa o moreno madraço, esquecendo-se de que a crise não nasceu devido aos muitos defeitos do pessoal do Mediterrâneo, esquecendo-se de que esta fragilidade acrescida que a Zona Euro tem mostrado desde o tsunami americano dos subprimes é, segundo quem sabe da poda, fruto do desequilibro crónico resultante de 20 anos de mercado único e 10 de união monetária com concorrência entre economias de competitividades muito diferentes.
Mas também no sul, onde a austeridade selvagem empurra milhões para o desespero e milhares para as ruas, onde a realidade se torna tão desalentadora que, paulatinamente, qualquer cenário alternativo se vai tornando plausível na mente do povo.
Independentemente da latitude, todos se esquecem da razão pela qual a União existe. Nem me interessa discorrer sobre as vantagens económicas, sobre as máquinas implacáveis que entraram pelas economiazitas indefesas que lhes abriram as pernas e os infinitilhões que estas receberam para esquecerem o pudor. A esse respeito, diga-se, estou absolutamente convicto – ou talvez fé seja um termo mais rigoroso que convicção- de que, sem o caciquismo feroz que ainda temos por cá e com um norte comprometido com uma verdadeira união económica poderemos resolver os desequilíbrios desta união monetário coxa, com vantagens para todos. Mas como digo, shit aint about that. A união de hoje começou a ser construída depois da WW2, controlando as matérias primas da guerra como garantia de paz num continente destroçado. A coisa correu bem, não houve guerras no seio do grupo (infelizmente houve-as, e bem sangrentas, no continente), o clube cresceu , prosperou e teve um desenvolvimento civilizacional que nos trouxe à UE pré-crise que, com todos os seus defeitos e assimetrias, é para mim um dos grandes exemplos para o mundo, perdoe-se-me a presunção e o eurocentrismo. E é isso que está em jogo. É isso que se põe em perigo com o nibelungo da Doroteia e com a miríade de Joões Jardins e Berlusconis que por aí andam. É esse valor mais alto que arriscamos quando brincamos com a integridade do grupinho, quando impomos retrocessos aberrantes nas relações laborais, quando tentamos copiar modelos económicos de sucesso baseados em modelos sociais vergonhosos, como Angola e a China. Até porque os problemas dos BRICS e afins acabarão por chegar, com o desenvolvimento económico e a exposição ao exterior virá fatalmente a vontade irreprimível de, de facto, viver melhor.
E é aqui, com Angola, que entroncamos com a questiúncula absurda que me fez escrever este post, mas que pelas vicissitudes da pena perdeu força neste texto que já vai longo: as declarações de Martin Schultz. Ou, mais precisamente, o tratamento imbecil que foi dado pela nossa comunicação social às mesmas, comendo de forma acéfala (ou catequizada) o discurso político, bradando a ingerência e a afronta à alma lusa que constituiriam. Pior ainda, alinhando-as com as da Doroteia, algo que, ajuizadamente, o poder político já não fez, que o respeitinho é muito bonito. As palavras do presidente do PE vêm em contracorrente e não estão minimamente alinhadas com o discurso oficial alemão. Reduzir estes dois episódios a “alemães voltam a criticar Portugal” parece-me simplista e contraproducente. Simplista porque ambos são alemães, mas aquilo não é tudo a mesma coisa – de resto, basta comparar as reacções do governo português a cada uma das declarações para perceber que são 2 boches bem diferentes! A história da Doroteia já conhecemos, estamos conversados. Já o Schultz, com todos os seus faits divers caricatos, é do SPD, força social-democrata da oposição, e parece-me um verdadeiro europeísta. Julgo que já defendeu as eurobonds, quer maior nível de solidariedade e de integração entre os países da UE, enfim, parece ser um dos poucos alemães com peso que não faz coro com o Merkosy e que, por isso, poderá ser uma voz no sentido de aliviar o torniquete, medida que seria bem-vista por todos os tugas, digo eu – e é por isto que toda esta comédia me parece contraproducente. Já nem falo de brio e de deontologia, só pelo facto de ser alguém que nos pode ser útil os media dariam provas de algum discernimento se fossem mais rigorosos na análise do que diz – o que nos traz ao pormenor do conteúdo. Talvez no mundo actual seja inevitável negociar abertamente com regimes que anteriormente causavam prurido à fina epiderme dos dirigentes políticos “ocidentais”. É evidente que precisamos de capital, é evidente que a Europa não nos “deu” que chegue e que temos de nos agarrar ao que pudermos. Também temos laços históricos e língua e mais não sei quê, yada yada yada. Tudo bem. Mas não me fodam, alguém tem dúvidas de que, enquanto democracia, comprometemos os nossos princípios ao estreitar relações com Angola ou com a China? Alguém pode, com honestidade, dizer que não é uma forma de conivência com o que se passa nesses países? Que estes negócios, bons ou maus, e a posição de vanguarda na exploração desses mercados aliciantes não acarretam algum grau de declínio moral? De qualquer maneira, nem é preciso entrar no plano intangível dos princípios, só em matéria de facto já temos sinais das novas práticas dos velhos tempos, nessas RDP's da vida.
Eu já sabia que, nesta ânsia de patrocínio que percorre a Europa, quase todos os pecados de ontem podem ser absolvidos. Descobri agora que levantar estas questões é frowned upon, algo que me parece menos abonatório do estado deste continente que adoro que do autor de tal ousadia. Francamente, o ideal subjacente às palavras do Schultz parece-me louvável.

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