segunda-feira, 24 de outubro de 2011

A palmada




O dia teve um início auspicioso! Bem, teve um início sobretudo cinzento, cheio de nuvens que nos brindavam com uma chuva miudinha a la londres, um vento constante a la oeiras, e sem neve! Mas apesar disso mantenho o adjectivo inicial, e repito: o dia tivera um início auspicioso - até meto assim à pressão um mais-q-perfeito para efeitos estilísticos (mas só nesta frase, segue em tempos verbais menos complicados dentro de momentos, que aquilo sempre dá trabalho, ainda me engano e é aborrecido)! Tinha dormido muito bem, havia no ar um ambiente de carinho e bom humor que já nos acompanhava desde o serão da véspera, e eu gozava a minha mijinha matinal com aquele prazer rameloso de quem se levanta com calma, à filme de gente sem preocupações proletárias, já a sentir na boca o sabor das torradas do pequeno-almoço, cuidadosamente tartinées com roquefort e doce de morango! Eu sei que a casa de banho não é o lugar de eleição para soltar a imaginação em deambulações gastronómicas, perdoem-me o mau gosto, mas este doce de morango tem 70% de fruta, e combina com o queijo que é um mimo!
Continuou porreiro até ao almoço. Fiz uns exercícios meio chatos para equilibrar os chacras e mais não sei quê - “parce q tu bouges jamais ton gros cul” -, joguei um pouco de PES2008 – pq a minha placa gráfica n dá pa mais, e convém compensar o exercício com algo de bem sedentário – e estudei alemão – pq tem de ser, e apesar de frustrante até é divertido. Resumindo, nada de bien méchant.
Depois veio o almoço, delicioso, couve roxa assim meio doce, schpezle com um molho de cebola surpreendente e uns escalopes de peru que, considerando a ave em questão, estavam bastante bons - isto hoje tá de índole muito culinária, estou a sentir-me a Enid Blyton.
E depois veio a palmada. Palmada na versão dela, porque fui eu o autor e, como qualquer artista, conheço a minha obra melhor que ninguém. Aquilo foi um apalpão! Assim com a mão cheia mas com maior intensidade nas pontas dos dedos, vigoroso mas cheio de carinho. O objecto do vigoroso carinho tinha acabado de lavar uma pilha de loiça e acho que se preparava mentalmente para encetar finalmente a tarefa cujo início andava a protelar há 3 dias. Era portanto um objecto de carinho vigoroso ligeiramente preocupado com as dificuldades inerentes ao trabalho futuro e bastante irritado com a sua indolência passada, mas ainda sem vontade nenhuma de começar. Ora se os objectos reagem de forma imprevisível aos carinhos mais vigorosos, nestas condições específicas um objecto tão explosivo como o meu não podia senão ter uma reacção violenta. E eu, como sujeito não menos explosivo, fiquei logo irritado com a violência da reacção. Mas reunindo todo o meu sangue-frio lá me arrastei para outra divisão, a espumar mas de boca fechada, para n se ver.
O pior veio depois. “ah e tal, tás a ver um filme, bem podias estudar alemão...”. Ora para quem tem a consciência tão pesada como eu, para quem sabe que tem no seu passado grandes nódoas negras e fedorentas de preguiça e inércia, esse é o tipo de boca que tem efeito desproporcionado e imediato! Como que atingido por um taser, todo o meu corpo estremeceu e senti-me como me sinto cada vez que essa parte do meu passado volta à superfície da minha consciência, qual matéria fecal de grandes dimensões que resiste ainda e sempre ao fluxo hídrico que a tenta arrastar – eh fadista! “pq é que dizes isso, já estive a estudar, já n tamos em aix, já encontrei o meu rumo, tás sempre a colar-me essa merda dessa etiqueta, que raio tens tu a apontar-me nowadays etc e tal”, umas ditas, outras pensadas, todas sentidas e muito violentas!
Talvez o objecto ainda associe ao sujeito presente os seus comportamentos pouco responsáveis do passado. De resto, talvez seja justo se assim for.
Não há dúvida de que o sujeito ainda tem este fardo perdido nos recantos da consciência, e talvez projecte no objecto o medo ou culpa que ainda sente, tomando como pretexto qualquer palavrinha ou boca inocente – if such a thing there be.
De qualquer maneira este texto foi uma bela catarse e permitiu-me ordenar as ideias. Permitiu-me ainda a realização de dois sonhos pessoais: falar publicamente à Jardel, na 3a pessoa, e fazer exercícios estilísticos de mérito duvidoso em torno de sanitas e cocó, caminho e meio andado para fazer rir o objecto!

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